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Pavillion/ TransTrans: história transgênera transatlântica

TransTrans: história transgênera transatlântica é uma das mostras que fica em cartaz até o início de março no Museu da Homossexualidade de Berlim. A exposição traz fotos e correspondências, até então nunca divulgadas, que revelam redes de conexão entre pessoas que escreveram, contaram e marcaram a história de pessoas trans do princípio do século vinte até os anos de 1960.  

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Sob a curadoria de Alex Bakker, Rainer Herrn, Michael Thomas Taylor e Annette F. Timm, TransTrans permite ao público visitante acesso direto a cartas, postais e fotografias que pioneiras/os das comunidades trans europeias e estado-unidenses trocavam com sexólogos e autoridades médicas da época. O que se vê através desse material diverso é a constatação de uma complexa teia de contatos ligados pela busca de legitimação da identidade trans no meio científico e acadêmico, primeiramente. 

A descoberta desse material de tirar o fôlego se deu através de pesquisas de projetos inter-relacionados ao tema. “Como Alex Bakker [um dos curadores] descobriu em suas pesquisas, redes de conexão se estendiam através do Atlântico e indivíduos trans mantinham relações próximas e de confiança com seus médicos, que também se correspondiam pessoalmente com cada um deles”, afirmam os organizadores de TransTrans.

 

Busca por uma certificação científica para seus objetidos emancipatório

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Essa confiança foi tecida e nutrida por ambos lados porque aqueles indivíduos trans eram respectivamente protagonistas em suas comunidades e estimulavam médicos e sexólogos da época a “retratá-los” cientificamente na busca por uma “certificação institucional” de que a transgeneridade não era uma enfermidade nem tampouco um distúrbio psicológico – tal como sabemos hoje. Por isso, disponibilizavam juntamente com suas cartas, mantidas ocultas do público até a atualidade em arquivos institucionais, fotos suas tanto para publicações científicas como para revistas especializadas da época. “Aqui vemos a iniciativa de pessoas trans dessa época que viam a comunidade científica como um instrumento para alcançar seus objetivos identitários e emancipatórios”, observam os curadores.

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Além desse materiais vindos de arquivos institucionais, publicações históricas e raras também compõem a mostra e nos revelam que há quase um século a abordagem sobre identidades de gênero já era um tema abordado pela mídia alemã. “Die Freundin” (A amiga, 1924-1933) – publicação para lésbicas com um caderno especial para travestis; “Die Insel” (A ilha, 1926-1932) – publicação para homens homossexuais e “Das 3. Geschlecht” (O terceiro sexo, 1930-1932) – publicação para travestis - são exemplos do retrato midiático especializado para o público LGBTI da época. Para H*, uma visitante da mostra, um aspecto que lhe chamou a atenção foi justamente essa dedicação ao tema da transexualidade já nos inícios dos anos de 1920, “ainda que a realidade de identidades de gênero já estava presente na Antiguidade e não era estigmatizada”, pondera a visitante. 

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Correspondências e fotos às autoridades médicas da época

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Entre o extenso material institucional pesquisado, destaca-se a farta correspondência entre o endocrinologista alemão Harry Benjamin, quem imigrou para os EUA durante a Primeira Guerra Mundial, e uma mulher trans sob o pseudônimo de Carla Erskine. Juntamente com suas cartas, Carla costumava enviar ao médico fotos suas e de outras mulheres trans de São Francisco. Como fundo para mais de 30 fotos enviadas, a sala de estar de Carla serviu também de inspiração para a parte central da mostra. Sua sala foi reconstruída pela equipe do museu para gravar vídeos de indivíduos trans da Berlim atual lendo tanto partes de correspondências de pacientes e médicos do passado quanto algumas das perguntas do “Questionário Psicobiológico” (1925) desenvolvido e usado pelo médico e sexólogo alemão Magnus Hirschfeld, conhecido como defensor ativista dos direitos dos homossexuais.

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“Um dos objetivos da mostra é dar voz às histórias que até agora permaneciam ocultas. Muitas dessas histórias trans se encontravam arquivadas e invisíveis na memória popular e no ambiente acadêmico. Em parte, isso se deve porque muitos indivíduos trans preferiram não se expor ou porque as perspectivas dominantes [aka heteronormativas] os ignoravam simplesmente ou eram incapazes de vê-los. Outro ponto importante da exposição é mostrar o conhecimento sobre gênero e sexualidade, assim como sobre identidades pessoais, que não são criadas individualmente, mas através de práticas de diálogo, intercâmbio e interação”, observam os curadores.

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Dar voz às pessoas trans 

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O aspecto de dar voz àquelas/es que foram e ainda são silenciadas/os por suas sociedades foi o que chamou a atenção de M*, um visitante da mostra. “É importe que não somente aquelas pessoas trans do passado tenham aqui seu espaço merecido para contar suas histórias. Mas, também que as pessoas, que apareceram no vídeo, tenham hoje essa mesma oportunidade de se expressar. Provavelmente, sem essa ação elas tampouco teriam um espaço para serem ouvidas”, observa o visitante.  

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Ainda que muitas imagens e termos da época possam ser desconfortáveis para o público por mostrarem terminologias e pensamentos considerados, atualmente, desrespeitosos ou extremamente técnicos, na época foram bem recebidos e adotados sem restrições pelos indivíduos trans. “Na maioria das vezes, as pessoas trans estavam contentes por terem encontrado médicos que rotulavam uma condição sob a qual previamente sofriam em isolamento; [elas] adotaram essa  terminologia técnica como uma fonte de empoderamento”, observam curadores. No entanto, em vez condená-las por tal atitude de submissão frente ao olhar científico paternalista e [hetero]normativo, segundo os organizadores de TransTransdeveríamos ter empatia com essas histórias trans do passado. Por que “[as pessoas trans] hoje têm mais opções para sua autoexpressão. Elas estão menos inclinadas para proclamar médicos como seus heróis, e estão mais propensas para abraçar a diversidade de suas identidades e subjetividades“, concluem.

 

Conexões sociais antes das redes sociais

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Em uma época sem redes sociais ou tecnologia semelhante, indivíduos trans se conectavam sobretudo uns com os outros através de seus médicos, responsáveis por seus tratamentos hormonais ou operações de transição de gênero, e de publicações da época. Muitas/os das/os protagonistas da mostra foram também responsáveis em conectar outros indivíduos trans às figuras médicas e científicas da época.

TransTrans: história transgênera transatlântica é capaz de despertar nossa empatia e identificação com os diversos desafios sociais, legais e médicos que indivíduos trans encaravam no início do século vinte. Para M*, outro visitante da mostra, “TransTrans nos dá uma outra perspectiva porque na Polônia, meu país de origem, estamos no meio de uma batalha furiosa pelos diretos LGBTI. E olhar hoje para essa história trans nos abre perspectivas para o futuro, para lutar por nossos direitos”.

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A compilação de registros fotográficos, correspondências e publicações históricas arma uma rede complexa e densa de ligações entre histórias trans do passado e do presente. As/Os protagonistas dessa mostra ajudaram a si mesmas/os a criar sua própria emancipação ao revelar em suas cartas e fotos como realmente se enxergavam e como gostariam de ser vistas/os pela sociedade da época. “Ela/Eles foram verdadeiras/os heroínas/heróis”, como conclui um dos indivíduos trans no vídeo após ler uma das cartas resgatadas pelos curadores.

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Observações:

  • Este texto foi originalmente publicado na página web da Revista Trip no dia 6 de fevereiro de 2020.

  • Todas as fotos expostas no texto foram gentilmente cedidas pela assessoria de imprensa do Museu da Homossexualidade de Berlim.

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