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Pavillion/ Eduardo Stupía e suas cenas de uma viagem por São Paulo

Através de um sintético aforismo o filósofo alemão Friedrich Nietzsche disparou: “Temos a arte para não morrer da verdade”. Ainda que o conceito de “verdade” seja amplamente discutido e referente a percepções subjetivas, a arte existe porque justamente a realidade não nos basta por si mesma. A expressão artística pictórica de reproduzir a relação e a (des)afinação do homem com o seu entorno, tempo e entes logra criar verdadeiras ficções imagéticas, as quais se originam a partir da percepção subjetiva do artista em questão e são capazes de nos remete à necessidade visceral e imanente do ser humano de narrar e fabular sua realidade.

 

Nesse aspecto, o artista plástico argentino Eduardo Stupía posiciona-se como um moderno aedo visual ao nos cantar, narrar e registrar sobre telas suas epopeias pelo tradicional bairro paulista da Barra Funda. Suas fabulações podem ser conferidas até a primeira de janeiro na exposição “Cenas de uma viagem” na Baró Galeria – Galpão (São Paulo), que convidou o artista a residir e a produzir um conjunto de obras inspiradas em suas experiências pelo bairro. Esquivando-se de representar o espaço urbano, que recém conhecia, de uma forma mimética e realista aos moldes dos tradicionais registros de artistas viajantes europeus em território nacional a partir do século XVI, Stupía confiou em sua percepção, instinto e memória para transpor e narrar em suas telas uma Paulicéia desvairada, polimórfica e polifônica. “O bairro da Barra Funda impõe suas qualidades a um recém-chegado e um forte temperamento cênico. Nesse sentido, entendo a mostra como um verdadeiro diário de viagem, além de aventuras geográficas, mas sim impressões psíquicas, ressonâncias, metáforas e miragens. Às vezes, olhando para cada uma das telas, individualmente parecem representar aspectos mais narrativos.”, analisa o próprio artista.

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

Vista geral da exposição na Baró Galeria – Galpão (São Paulo, novembro 2015)

 

A exposição formada por grandes telas dispostas em um considerável galpão garante ao observador espaço necessário para se soltar e se acomodar na densidade de cada plano básico das telas. Cada superfície material das telas foi detalhadamente preenchida ora com borrões esfumados de tinta ou carvão ora com desenhos abstratos em grafite que não permitem entre si um espaço de respiro sequer. Tal densidade do plano básico de cada obra é trabalhada à exaustão pelo meticuloso trabalho dos planos mínimos individuais que formam pequenos nichos, centros cerrados e independentes entre si, e que se sustêm por si mesmos. Porém, esses mesmos núcleos mínimos individuais dialogam e compõem gradualmente uma paisagem uníssona sobre plano básico de cada tela e, consequentemente e em larga escala, com o amplo ambiente do galpão que os abriga e permite a cada tela seu próprio espaço narrativo.

 

 

 

 

 

 

 

 

Como conglomerados cósmicos independentes e abstratos, as paisagens paulistas que Stupía retrata são autosuficientes e infinitas, estão quase que flutuando no ar e são capazes de penetrar profundamente em seus expectadores através do exercício de observação. Cada paisagem é cheia de possibilidades, interpretações e visões; com cada uma dessas paisagens o observador aprende a escutar, a ver e a mirar atentamente o que o artista, um estrangeiro em um novo ninho, lhe está narrando e fabulando visualmente a partir de suas particulares impressões e lapsos de memória sobre o bairro da Barra Funda. Nesse aspecto de aprender a ver, podemos fazer uso do emblemático romance moderno em língua alemã de Rainer Maria Rilke, Os cadernos de Malte Laurids Brigge (1910), em que o protagonista, um jovem estrangeiro recém-chegado em uma cidade estrangeira e cujo entorno lhe provoca fortes descobertas e impressões afirma: “Estou aprendendo a ver. Não sei o que provoca isso, tudo penetra mais fundo em mim, e não pára no lugar em que costumava terminar antes. Tenho um interior que ignorava. Agora, tudo vai dar aí. E não sei o que aí acontece.”. Se para o personagem ficcional a nova cidade em que se encontra lhe estimula a ver, mas não sabe como processar ou fabular essa nova experiência, por sua vez Eduardo Stupía verbaliza e exterioriza todos os estímulos que recebeu e interiorizou através de sua linguagem e gestualidade pictóricas, como afirma: “Tudo começou a ser processado e traduzido na forma de linguagem gráfica pura, ou seja, minhas impressões sobre a viagem produziram um fenômeno mais análogo do que mimético”.

 

Muito mais do que puras reproduções miméticas, as paisagens de Stupía conservam um quê nebuloso, impreciso, altamente gestual e sem aparentemente nenhuma relação de semelhança com a realidade retratada de “esperadas” cenas de uma viagem. Justamente se tratando de uma cidade esteticamente tão particular como São Paulo, as paisagens do artista argentino passam a narrar o estado do avesso do avesso do avesso das coisas (em citação à canção Sampa), o estado puro e original do espaço que conhecemos hoje antes mesmo do surgimento das próprias coisas, o estado de origem das vaidades e dos tumultuários das ausências urbanas – como já havia sido poetizado há mais de noventa anos em O cortejo por Mário de Andrade em 1922:
 

Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia - a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As retratadas cenas da viagem de Eduardo Stupía pela Barra Funda foram batizadas com números ou letras individuais – fator que pode nos confundir a princípio: estaria ele nos propondo alguma espécie de mapa topográfico do bairro? Porém, não foi de forma alguma intenção do artista de fazer referência a coordenadas geográficas com tais números e letras. Ele simplesmente incorporou-os de forma aleatória, rompendo, assim, uma vez mais com expectativas por um tradicional e realista registro de viagem o qual prima pelo registro exato do espaço. A topografia que o artista nos propõe é a da sua memória a qual recria pictoricamente o espaço urbano de estímulos, ruídos, cores (ainda que tímidas e de uma paleta fechada) e da multiplicidade de instantaneidades que aprendeu a ver em São Paulo e traduziu através de gestos ligeiros e fugazes sobre telas. As simultaneidades e turbulências da realidade paulista captadas foram narradas graficamente nos múltiplos e simultâneos planos mínimos individuais que compõem cada tela. Cada um desses planos tem o mesmo valor de importância e representação que os demais em uma obra. Ou seja, os planos mínimos que compõem cada paisagem estão em uma relação de igualdade absoluta entre si, não havendo nenhum plano que estabeleça uma relação de hierarquia com os demais ou sendo colocado como centro da obra.

Esse aspecto nos faz associar a arte de Eduardo Stupía ao conceito da música dodecafônica desenvolvido na década de 1920 pelo compositor austríaco Arnold Schönberg, que rompeu com o sistema musical ocidental ao basear suas criações na música atonal. Schönberg partia da premissa da igualdade absoluta os doze sons da escala cromática e da negação de uma relação hierárquica ou de superioridade entre eles. Organizados sistematicamente pelo compositor, nenhum desses sons poderia ser repetido sem que os onze restantes tenham aparecido previamente. Assim como na técnica dodecafônica, Stupía trabalha atonalmente com cada um de seus planos mínimos individuais, pois são tratados como equivalentes; nenhum deles recebe maior importância que o outro ou é retratado de forma preferencial ao ponto de que o restante dos outros núcleos gravite sobre esse e, além disso, nenhum desses planos aparece repetido na paisagem que compõe. Um belo exemplo de uma obra dodecafônica que traduz musicalmente as cenas dessa viagem de Stupía por São Paulo foi composta por Juan Sebastián Pérez Varelo, um jovem e talentoso músico de Barranquilla, e intitulada de “Chuva” – referência perfeita e/ou irônica ao clima da cidade.

 

 

 

 

Composição "Chuva" de Juan Sebastián Pérez Varelo

 

Assim como Schönberg reformulou e inovou as possibilidades da música erudita há quase um século para atender novas necessidades e sensibilidades do homem no espaço urbano, Eduardo Stupía reformula e inova o conceito de cenas de um diário de viagem através de imagens que reproduzem muito mais do que retratos miméticos. Sorte nossa, afinal “A arte existe porque a vida não basta”, como afirmou certa vez o poeta Ferreira Gullar.

 

Observações:

  • Este texto foi originalmente publicado no blog da revista eletrônica www.peixe-eletrico.com no dia 23 de dezembro de 2015.

  • Todas as fotos expostas no texto foram gentilmente cedidas pela Agência Lema.

  • A citação de “Os cadernos de Malte Laurids Brigge” pertence à edição de 1996 da Editora Mandarin com tradução de Lya Luft, página 8.

Chuva - Juan Sebastián Pérez Varelo
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