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Objetiva/ Exposição em Buenos Aires apresenta panorama da fotografia argentina moderna
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Em 1927, uma fotografia tomada em plonglée mostra detalhes da gaveta inferior de uma escrivaninha contendo alguns elementos geométricos, uma lâmpada e uma máscara: um experimento metafórico sobre referências de seu passado e do mundo urbano de Buenos Aires. Batizada Mundo próprio, o jovem fotógrafo Horacio Coppola, então com apenas 21 anos, criava ali um marco na fotografia moderna argentina, dando o pontapé inicial ao trabalho de toda uma geração de fotógrafos e fotógrafas argentinos.

 

Quase um século depois, Mundo próprio volta a ser destacar no cenário cultural de Buenos Aires, sendo agora a obra inaugural e que dá título à exposição Mundo próprio: Fotografía moderna argentina 1927-1962, em cartaz no MALBA (Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires). Curada pelo também fotógrafo argentino Facundo de Zuviría, visto pela crítica especializada como o mais “coppoliano” dos fotógrafos de seu país, a mostra apresenta cerca de 250 obras de 25 artistas locais e imigrantes, entre fotografias, livros, revistas culturais e fotonovelas da época. 

 

Sob influência das vanguardas europeias do início do século 20, como a Bauhaus alemã – onde Coppola conheceu a fotógrafa Grete Stern, que se tornaria sua esposa – , esse grupo de artistas argentinos e de estrangeiros radicados em Buenos Aires iniciaram um novo relato visual do país. Experimentações, abstrações de formas e incorporação de novas linguagens serviram para ilustrar a fragmentação e os conflitos do sujeito moderno, revelando imagens do inconsciente sob a lupa da psicanálise e a complexa textura e drama da vida urbana e cultural argentina.

 

Facundo de Zuviría conversou com a ZUM sobre a mostra, o cenário cultural argentino, legados e paralelismos com a cultura modernista e a fotografia abstrata brasileira do mesmo período.

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Em que se baseou sua decisão curatorial para eleger os fotógrafos para a exposição?

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Facundo de Zuviría: Mundo próprio é um panorama que pretende abordar, pela primeira vez, toda uma produção fotográfica que representa a modernidade na fotografia argentina de 1927 a 1962. Essa modernidade se manifestou através de diferentes autores e estilos, em imagens que vão das primeiras abstrações e jogos óticos às fotomontagens e obras experimentais dos anos 1950 e que se baseava em temas como a cidade, a forma, o retrato e um tipo próprio de surrealismo. Ainda que a mostra tenha seus alicerces nos cinco expoentes da nossa fotografia moderna: Horacio Coppola, Grete Stern, Annemarie Heinrich, Sameer Makarius e Anatole Saderman, também podemos incluir nessa relação Juan Di Sandro, uma referência e precursor do fotojornalismo no país. No entanto, outros fotógrafos, menos conhecidos porque suas obras ficaram renegadas ou simplesmente esquecidas no tempo, foram resgatados. Com isso, estamos de certa forma fazendo “justiça” ao colocá-los num lugar de evidência e do qual não deveriam nunca ter saído, pois também fizeram parte do grupo de fotógrafos que ajudaram a construir a imagem fotográfica no país no século 20.

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Uma vez selecionados os artistas para Mundo próprio, qual foi o fio condutor temático que você adotou?

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FZ: O grande tema da mostra é a cidade de Buenos Aires: um paradigma da modernidade e cenário da mudança social, do progresso, das expressões culturais e da vanguarda no país. Por isso, todos os fotógrafos da época fizeram uso dela. O outro fio condutor é o retrato, um dos temas centrais da fotografia desde seus primórdios e que teve em Annemarie Heinrich sua grande mestra, juntamente com Anatole Sanderman. Esses fotógrafos modernos buscavam algo diferente: já não retratavam, mas expressavam o sujeito fotografado, reformulando o enquadramento, propondo um recorte da realidade segundo suas necessidades formais, mirando tanto a luz como a sombra para obter fotografias que deixavam ver, em uma mesma imagem, o retratado e eles mesmos. E para encerrar os temas centrais, há as abstrações elaboradas sobre o tema urbano ou sobre si mesmas e que foram desenvolvidas por diversos fotógrafos, desde Coppola e Grete Stern no início da década de 1930, até chegar ao final da mostra com o caráter experimental das fotografias de Sameer Makarius, grande figura dos anos 1950, e com as fotonovelas de George Friedman.

 

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Quais obras da mostra você selecionaria para que o público brasileiro pudesse ter seu primeiro contato com a fotografia moderna argentina? 

 

FZ: Selecionaria Mundo próprio, que dá título à mostra, e o grupo de suas primeiras abstrações e experimentos entre os anos de 1927 e 1931. Isso porque Coppola é a pessoa que melhor representa o início da modernidade na fotografia argentina, chegando a ser o seu expoente máximo. Ao regressar de sua primeira viagem à Alemanha, Coppola traz consigo sua primeira câmera Leica e a ideia de fotografar Buenos Aires. Porém, sua intenção não era de simplesmente retratar a cidade, mas sim de usá-la como veículo sobre o qual construiria sua própria linguagem com ângulos plongeé e contra-plongeé, com enquadramentos de objetos banais formando uma textura urbana. No entanto, o público brasileiro já tem um certo contato com a obra de Coppola justamente através do Instituto Moreira Salles, que exibiu e publicou seu trabalho em distintos livros e ensaios.

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Mundo próprio abrange 35 anos da história argentina, um período marcado por sucessivos golpes militares e crises políticas. Isso foi, de certa forma, capturado pelas lentes desse grupo de fotógrafos?

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FZ: O único desse grupo que foi testemunha ocular da história argentina foi o ítalo-argentino Juan Di Sandro, considerado o pai do jornalismo gráfico na Argentina de 1920 a 1970. Ele foi uma pessoa que atravessou a história do país como fotojornalista registrando todos os acontecimentos políticos, como o período do peronismo e a morte de Eva Perón. Já os demais, diria eu, têm suas obras centradas no campo da arte e preferiram desenvolver uma linguagem própria e artística, tema resgatado nessa mostra.

 

 

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Se por um lado não houve um registro fotográfico histórico das primeiras décadas do século 20, verifica-se sim um registro da situação da mulher na sociedade argentina através das lentes da alemã Grete Stern.

 

FZ: Grete Stern, além de uma grande fotógrafa, foi também designer gráfica de destaque e autora de uma série chamada Os sonhos, um dos trabalhos mais importantes de nossa fotografia. Produzidas entre os anos de 1948 e 1951 para ilustrar a seção A psicanálise lhe ajudará, da revista de fotonovelas Idílio, essas fotomontagens possuem um caráter bastante surrealista e onírico. Grete fazia a interpretação gráfica dos sonhos das leitoras que enviavam semanalmente à revista a descrição do que haviam sonhado. Na verdade, esses sonhos eram pesadelos porque giravam sempre em torno de perseguição, opressão, submissão, desânimo. O tom mordaz dessas fotomontagens é uma denúncia precoce da situação de subjugação da mulher nessa época.

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Assim como Grete Stern, a grande maioria dos fotógrafos que compuseram o projeto artístico da fotografia argentina moderna era formada por imigrantes (Alemanha, Rússia, Polônia, Itália, Hungria) que encontraram ali um lugar de refúgio ante a Alemanha nazista. Seria possível pensar a fotografia nacional sem a mirada do outro, do estrangeiro? Em que eles contribuíram para a definição da fotografia argentina moderna?

 

FZ: A conformação da fotografia “argentina” com protagonistas imigrantes (quase todos) coincide com o que é e o que sempre foi este país: uma enorme mistura de raças em solo americano, especialmente na cidade de Buenos Aires. A mirada do outro sobre a Argentina é realmente uma contribuição extraordinária porque não creio que nada do que somos e nos tornamos teria sido possível sem a presença de imigrantes. Fomos muito privilegiados com todo o êxodo que recebemos e que, em muitos casos, era formado por pessoas com ideologias progressistas e muitas delas vinham dos mais diversos campos culturais, como o da literatura, da arte, da pintura e, claro, da fotografia. Toda essa gente trouxe uma visão de mundo e  formação cultural novas. E como vieram para se radicar aqui, começaram a aprender nosso idioma, nossos costumes e a construir suas vidas aqui, mesclando sua bagagem vanguardista com o que encontraram aqui.

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Paralelamente às agitações culturais na Argentina nas primeiras décadas do século 20 e igualmente influenciada pelas vanguardas europeias, houve no Brasil uma intensa busca pela ruptura com o tradicionalismo e por novas experimentações artísticas através do Movimento Modernista. Enquanto em Buenos Aires Horacio Coppola dava início à fotografia moderna argentina em 1927, em São Paulo Oswald de Andrade publicava o Manifesto Antropofágico em 1928 em que propunha repensar a dependência cultura brasileira da Europa e resgatar o “genuinamente” local. Sendo a fotografia moderna argentina calcada na mirada estrangeira de seus atores, houve também a proposta de resgate da mirada para o “genuinamente” local, da cultura autóctone?   

 

FZ: Creio que a modernidade argentina mirou para a cultura local em vários sentidos, ainda que muito influenciada pela Europa. Talvez esse aspecto peculiar tenha acontecido justamente pela confluência dos modelos europeus transpostos à nossa terra e modelados às propriedades culturais autóctones. Por exemplo, Hans Mann, Annemarie Henrich e Grete Stern, três alemães radicados na Argentina, fizeram trabalhos excepcionais no interior do país retratando indígenas e distintas culturas locais. Merecem uma menção especial os retratos de indígenas feitos por Mann no início dos anos de 1930 às margens do Rio Pilcomayo, no norte do país. Esse trabalho foi publicado em dois cadernos de alta qualidade gráfica e acompanhados de relatos de suas tradições. Essa série de retratos in situ dos protagonistas dessas histórias são fotos tomadas de ângulos pouco convencionais e que buscavam a expressividade de seus rostos num ensaio fotográfico de extraordinária qualidade e humanismo. Outro fato importante da nossa história fotográfica foi a mostra do russo Anatol Sanderman que publicou em 1935 Maravilhas das nossas plantas indígenas, um dos primeiros livros fotográficos do país. Nesse livro, ele exibe uma seleção de imagens de plantas, frutos e flores feitas em seu estúdio, iluminando-os a fim de buscar a expressão máxima de suas formas e alcançando autênticos retratos expressivos.

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Ainda estabelecendo paralelismos com a cultura modernista brasileira, a partir de 1950 a fotografia abstrata e experimental começou a se difundir através dos trabalhos de  German Lorca, Thomas Farkas, Marcel Giró e Geraldo de Barros. É possível pensar que houve algum tipo de intercâmbio entre os atores da fotografia moderna argentina e da brasileira?

 

FZ: Pode-se considerar que houve muito pouco intercâmbio entre os fotógrafos de ambos países. E o único cruzamento entre eles se dava nos fotoclubes. Geraldo de Barros, pelo que me consta, participou do Fotoclube de Rosário e de algum outro em Buenos Aires. Do mesmo modo, sei que Annemarie Heinrich participou de fotoclubes em São Paulo na década de 1950. No entanto, essa falta de comunicação e intercâmbio entre artistas latino-americanos é presente até os dias atuais e isso talvez seja ainda uma herança do colonialismo, porque acabamos muitas vezes nos conhecendo e nos encontrando na Europa, ao invés de olharmos mais para nosso próprio continente.

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Qual foi o legado desses artistas para a fotografia argentina contemporânea?

 

FZ: A principal herança foi ter finalmente firmado a fotografia no campo da arte em um lugar autônomo, assim como já ocupavam a pintura e outras expressões plásticas. Fazendo uma pequena retrospectiva, a fotografia do fim do século 19 e das primeiras décadas do século 20 quis ser reconhecida como arte e, para isso, buscou aproximar-se ao máximo e até mesmo copiar a “arte maior”, a pintura. Daí surge um movimento pinturesco sobre a fotografia com a utilização de bromóleos e temas pictóricos. Na modernidade, esse caminho é completamente diferente: a fotografia busca ser reconhecida como arte, mas faz isso a partir do seu reconhecimento como uma linguagem autônoma, buscando desenvolver uma linguagem própria em outros códigos e se afastando da pintura.

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Em seu caso específico, como se deu a absorção dessa herança em sua mirada fotográfica?

 

FZ: Considero Coppola meu mestre, ainda que nunca tenha estudado efetivamente com ele. Sua maneira de fotografar a cidade me produziu uma grande empatia e, com o passar do tempo, fui me dando conta de que havia muitos pontos de encontro entre nossos trabalhos, especialmente suas fotos mais antigas, de 1931. Mas isso só se tornou claro para mim no final dos anos de 1990. Até então, já havia desenvolvido meu trabalho e construído toda obra sobre a cidade com muitas confluências, mas também diferenças. A partir daí, nos tornamos amigos e lhe propus fazermos a quatro mãos o livro de fotografias Buenos Aires (Coppola + Zuviría), com suas obras dos anos de 1930 e as minhas de 1980-90.  Nessa edição pode-se ver, então, a afinidade que existe no olhar dos dois.

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O público argentino está familiarizado com os trabalhos de Horacio Coppola, Grete Stern e Annemarie Heinrich. Quais mestres desconhecidos da fotografia moderna argentina resgatados por você que continuam te surpreendendo? 

 

FZ: Não consigo parar de me surpreender em Mundo próprio com as  fotografias noturnas de Buenos Aires de Juan Di Sandro: misteriosas e com alto teor dramático. Outro exemplo é o húngaro George Friedman que, vindo da área do cinema, produziu fotonovelas para a revista Idílio criando mundos de ficção visual com inigualável dramatismo e ambientação, além das séries de texturas e abstrações urbanas de Ricardo Sansó. 

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Observações:
  • Este texto foi publicado originalmente no website da Revista de Fotografia ZUM, em 28.05.2019;
  • Todas as fotos foram gentilmente cedidas pela assessoria de imprensa do museu MALBA de Buenos Aires para ilustrar a entrevista. 
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