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Zeitgeist/ Marina Saleme sob o céu que nos protege

Os tempos de amor e cólera que o país está vivenciando diariamente fazem com que declarações e ações de qualquer pessoa sejam interpretadas politicamente de maneira imediata e reveladoras de seu pensamento ideológico. Pois bem, se qualquer ato nosso está sendo tomado como um ato político, pode-se afirmar que todo trabalho estético também implica um ato político. Isso porque uma obra de arte de qualquer disciplina (seja ela pintura, desenho, escultura, video-arte, performance, etc) tende a estimular seu observador a desenvolver um determinado grau de reflexão a partir do contato com o que ele tem representado diante de si. Esse ato de reflexão que surge no observador pode tanto se centralizar e se encerrar na obra de arte em si como também pode se projetar para fora da composição da obra, mirando e atingindo a própria realidade do observador – quer seja ela sobre um dado momento histórico-social de seu entorno, quer seja sobre sua vida privada e experiências pessoais. Com isso, o ato de reflexão estimulado por uma obra de arte leva em consideração, por um lado, que tal projeto estético ali representado constitui um microcosmo cerrado em si mesmo, ou seja, um sujeito próprio, legítimo, autônomo e autorizado pela própria obra de arte. E, por outro lado, também é capaz de fomentar uma nova dinâmica que transcende aquele microcosmo interno da obra e permite a fomentação de um diálogo entre ela e o macrocosmo da esfera privada ou social do observador.

 

Tendo em consideração esse caminho de mão dupla sobre o ato da reflexão que uma determinada obra de arte nos permite ter, observa-se que o último trabalho exposto em uma mostra individual da artista plástica Marina Saleme (São Paulo), “O céu que nos protege”, traz à tona um ponto delicada e crucialmente discutido em nosso momento presente: o ato da manipulação, do apagamento ou ocultamento proposital e da revelação tendenciosa de realidades, evidências e informações que nos são destinadas e apresentadas a nossa percepção.

 

 

 

Para navegar pelas águas ambíguas e contraditórias dos atos de “re-velar” e “des-cobrir” imagens pictóricas, Marina Saleme fez uso de um método quiasmático responsável por intersectar fotografia e pintura em processos simultâneos de convergência e divergência que ocultam e revelam num mesmo instante informações, detalhes, nuances e discursos. No diálogo entre essas duas linguagens estéticas, a artista estabeleceu um jogo de mostra-esconde sobre telas que receberam, por um lado, o mesmo motivo de fundo através de uma impressão fotográfica e, por outro, distintas camadas e cores de tinta óleo e acrílica. Sob tais camadas propositalmente pinceladas sem esmero, aquilo que deveria estar numa primeira instância oculto ou escondido da mirada ligeira do observador passa a ser parcial e paulatinamente revelado: uma trivial cena familiar num sábado no parque sob um céu nublado. A presença das figuras humanas de uma mulher, uma criança e de um homem, que está de costas para observador e tirando foto dessas duas, no idílico e bucólico espaço do Regent´s Park em Londres compõe uma realidade de certo modo pacífica, ordinária e sem sobressaltos aparentes. No entanto, a melancolia inicial desse singelo programa familiar é interrompida e coberta por tempestades de cores, pinceladas e matéria – e tudo isso debaixo de um céu que, a princípio, protegia e sustentava aquela narrativa simples e trivial de pano de fundo. A intervenção da artista, que se assemelha a de um narrador onisciente intruso nessa ficção, invade a narrativa bucólica, envolvendo seus personagens em uma trama que somente ela (a artista) pode manejar, manipular, cobrir e descobrir. Marina Saleme ao proteger seus personagens de olhares alheios, ou melhor, dos olhos do observador, no microcosmo premeditadamente oculto por suas pinceladas, protege simultaneamente sua própria ficção, a qual somente ela tem acesso e decide revelá-la parcialmente, como se pode averiguar nas obras da série “Sábado”:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Se os últimos trabalhos de Marina Saleme podem ser interpretados como textos que transmitem uma narrativa tendenciosamente parcial e cujos personagens são signos expressivos que, por momentos, surgem e desaparecem na disposição-distribuição projetados e manipulados propositalmente pela artista, nota-se também que a realidade representada por ela obedece a regras sintáticas que se apropriam da ficção de cada tela. O jogo de mostra-esconde de cada tela cria e delimita no locus figurativo do parque o espaço que os olhos do observador podem percorrer – ou ao menos até onde têm a permissão para isso. Nesse aspecto, podemos entender que a intervenção sobre o que é re-velado ou des-coberto aos nossos olhos através das telas de Saleme aponta sutilmente um aspecto do nosso cotidiano: de forma quase naturalizada e sem imediatamente nos darmos conta, somos acostumados a receber e a consumir aquilo que, a princípio, nos é permitido saber e ver, aquilo que nos é apresentado como argumentos ou evidências de distintas narrativas que articulam e compõem nossa percepção da realidade. Porém, cada um desses argumentos ou evidências trazem em sua essência uma narrativa manipulada, sendo ela o resultado de intervenções de “narradores oniscientes maiores” que, assim como Saleme agiu diretamente sobre o fluxo narrativo em suas telas, não poupam esforços em intervir, manipular, ocultar ou revelar aspectos ou fatos de tais ficções criadas, administradas e inseridas em nossa realidade.

A estratégia de Marina Saleme de revelar ocultando (e vice-versa) também se encontra na série de fotografias lenticuladas sobre tela que deu nome à exposição, “O céu que nos protege”. O efeito de mobilidade e dinamismo que perturba a melancólica paisagem familiar (a mesma da série “Sábado”) provém do próprio observador que passa a ter o controle e o poder de manipulação sobre a ficção interna que compõe cada tela. Gradativamente e devido ao efeito lenticulado sobre as fotos, uma nova narrativa é posta em cena em cada uma delas. Essa narrativa, que varia de tela para tela, possui seu fluxo e componentes cerrados em si mesmos e são diretamente dependes da intervenção presencial, ou melhor, da locomoção corporal do observador. Este, conforme seu distanciamento ou aproximação em relação a cada imagem, pode ter relevados ou omitidos figuras humanas, prados, árvores, céus, nuvens... tudo ou nada conforme o tempo e espaço que ele mesmo determina.

 

Nesse sentido, Marina Saleme oferece ao observador um papel fundamental e autoral na mediação e no desenvolvimento da trama pictórica que ele decide contar ou ocultar – o poder da palavra, do “re-velar” típico do narrador onisciente e onipresente na narrativa microcósmica no interior de cada tela. Contudo, essa esfera microcósmica da obra de arte pode alcançar um campo mais abrangente de atuação e atingir a esfera macrocósmica da realidade do observador: tanto na teoria quanto na prática, cada um vê, observa e analisa exatamente aquilo que está disposto ou aquilo que sua mirada e posicionamento (físico e/ou ideológico) lhe permitem. Fatos e dados controlados por esse observador podem ser omitidos ou revelados, evidenciados ou ocultos a partir da posição que ele decide tomar - e tudo debaixo de um único céu que protege e abarca toda uma legião de outros indivíduos que se encontram nesse mesmo exercício. Entende-se também como um ato político per se a postura de se aproximar ou se distanciar/alienar que cada indivíduo toma em relação à realidade que lhe é apresentada, apropriando-se dela, desenvolvendo-a e articulando-a como uma narrativa própria ou simplesmente alienando-se dela a partir de seu distanciamento. Nesse exercício tendencioso e dinâmico da percepção da realidade, um observador experiente tem a capacidade de criar, manipular e sustentar a narrativa que melhor lhe convém. Paralelamente a essa ideia, ler e interpretar os trabalhos de Marina Saleme depende essencialmente do posicionamento que o observador decide tomar diante de cada tela e da narrativa que busca captar deles. É esse o indivíduo responsável pela vinculação intrínseca dos atos de “re-velar” e “des-cobrir” de cada argumento presente nas obras, fazendo-os se convergirem e se divergirem a partir da viceral estrutura quiasmática entre a fotografia e a pintura nos trabalhos da artista.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Observações: 

  • Este texto foi originalmente publicado no site www.peixe-eletrico.com no dia 12 de julho de 2016

  • As imagens exibidas neste artigo foram gentilmente cedidas pela assessoria de imprensa da Galeria Luisa Strina.

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