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Zeitgeist/ Ela está de volta: Mira Schendel

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Ainda que atualmente não seja conhecida pelo grande público brasileiro, a artista plástica Mira Schendel (1919-1988) começou a partir de meados dos anos 1950 a traçar um projeto artístico que manteve durante toda sua vida e lhe rendeu o reconhecimento como uma das artistas brasileiras mais originais e provocativas de sua época. Porém, sua provocação e originalidade não se caracterizaram pela retratação de magens consideradas “politicamente subversivas” ou “moralmente despudoradas” aos olhos da censura militar entre as décadas de 1960 e 1980. Sua ousadia se baseava na “aparente” simplicidade de seus trabalhos; sua provocação era traçada propositalmente através de gestos quase aleatórios sobre telas e papeis e que ainda hoje nos fazem dizer quando estamos diante deles: “Ah, mas isso é muito simples e até uma criança pode fazer!”. Em parte, essa exclamação é verdade - a simplicidade está ao alcance de todos, mas nem todos têm talento e habilidade para incorporá-la como filosofia pessoal e tê-la como Leitmotiv durante toda a sua vida. Para incorporar e sustentar a simplicidade de ser e agir, é necessário não só talento, mas principalmente coragem para defender seus próprios princípios, tempos e crenças.

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A sua vez, Mira Schendel provocava pela arte da simplicidade, por desmistificar e desnudar a realidade que captava através de gestos pretensiosamente descomplicados, mas que ninguém ousava expressá-los, sustentá-los e defendê-los como ela fez ao largo de mais de 40 anos de intensa produção. Ela não pintava exatamente o que via, aliás em uma declaração revelou: “(...) não precisa pintar aquilo que se vê, nem aquilo que se sente, mas aquilo que vive em nós (...) Tanta dor me levou a um meio de expressão. Não sei se minha pintura é grande, só sei que é arte”. E o que vivia e movia Mira era o fator de deslocamento de seu lugar, de sua língua e de sua cultura de origens; era a problemática existencial de qualquer pessoa e a defesa da liberdade de decidir seu próprio caminho.

Nascida em 1919 em Zurique (Suíça), Mira mudou-se com a mãe para Milão (Itália) em 1922 após a separação dos pais. Ali, ainda criança, começou a estudar arte e, mais tarde, ingressou na Faculdade de Filosofia. Por causa de suas origens judias, foi obrigada a largar seus estudos e em 1941 deixou a Itália para se refugiar finalmente na ex-Iugoslávia, onde se casou com seu primeiro marido. Em 1949 o casal partiu para o Brasil, fixando-se em Porto Alegre, onde Mira voltou a se dedicar à pintura e, de forma autodidata, às leituras de filosofia. Ainda que expondo em diversos locais e tendo um relativo sucesso, a artista se sentia artisticamente isolada na capital gaúcha – motivo pelo qual a motivou a se mudar sozinha para São Paulo em 1953. Nessa metrópole, onde viveu até seu falecimento em 1988, ela rapidamente se inseriu no círculo cultural e intelectual da época, participando em diversas exposições nacionais, como a Bienal Internacional de Arte de São Paulo em 1981, e internacionais, como a Bienal de Veneza em 1968.

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Essa sua atitude de deslocamento geográfico para São Paulo, fruto de sua própria eleição e visando suprir e respeitar suas necessidades laborais e (por que não?) pessoais, nos mostra Mira Schendel como uma mulher corajosa por haver sido honesta consigo mesma, com seus ideais e desejos. Determinada e firme na defesa de suas ideias e de seus próprios tempos, ela foi, e ainda continua sendo, uma mulher inspiradora porque soube se impor e se defender no meio artístico e intelectual paulista, basicamente formado por homens. É conhecido que, nos encontros intelectuais que frequentava nos anos de 1960 e 80, ela discutia em pé de igualdade e se fazia escutar por pensadores, teóricos e críticos de arte. Suas discussões e confrontações com o escritor e filósofo tcheco Vilém Flusser, também residente em São Paulo na época, marcaram o trabalho de ambos e desse contato, por exemplo, Mira absorveu as preocupações do filósofo sobre os conceitos de transparência e a linguagem – os quais colocou em prática em seus trabalhos. Para poder ter conquistado seu espaço e se defendido nesse meio de forma tão consistente e firme, Mira contou com a sua mais importante arma: sua própria formação manejada e guiada por si mesma.

Leitora voraz de literatura (desde clássicos gregos até os poetas modernos brasileiros) e admiradora da nossa música popular, especialmente dos sambas de Chico Buarque, Mira imprimiu todo seu mundo e interesses em sua extensa e diversa produção artística que abrange cadernos (cerca de 200), pinturas, instalações e desenhos. Sua liberdade de não se limitar a um caminho exclusivo é refletida também em sua escolha por diversas técnicas: têmperas, colagens, nanquim, grafite, aquarela, folhas de ouro, decalques. Um exemplo da transposição de suas leituras para sua arte, nesse caso da Ilíada de Homero, pode-se ver no quadro O retorno de Aquiles (1964):

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Todas as figuras desse quadro têm uma simplicidade que espantam e até confundem o observador. Aqui, a artista o desafia a buscar nos elementos figurativos (ou seja, na seta, nessa espécie de batente de um portal e nos dois círculos ou rodas) referências à Aquiles e às suas aventuras. Mira ilustra a sua leitura do clássico, mas com figuras cruas e duras que, aparentemente, nada têm a ver com uma grande aventura épica. Através desse batente, ela conduz o observador ao campo do “talvez”: talvez seja uma lança inserida dentro do portal; talvez as duas formas circulares façam referências ao escudo de Aquiles ou sejam rodas da carruagem do herói. Mas, uma coisa é certa: Mira desloca um dos cânones da literatura universal para o seu próprio mundo, apoderando-se inclusive de um idioma que não é o seu – realidade que ela vivenciava diariamente como estrangeira radicada no Brasil – para escrever “Now that I am back” (tradução livre: Agora que estou de volta). Essa frase é muito emblemática no caso de Mira porque possui uma força vital de ressurgimento, de recriação, de retorno cíclico que está presente em sua produção em todas as etapas de sua vida. Por outro lado, essa frase tem uma força simbólica particular para nós mulheres, pois temos a sensibilidade de perceber, sentir e renascer em cada nova etapa de nossas vidas, em cada experiência que passamos. Ressurgimos, simplesmente.

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Hoje é possível observar que Mira Schendel teve um elemento comum que esteve presente em quase todos seus trabalhos ao largo de 40 anos de produção: as formas circulares. Esse núcleo do movimento circular, que volta e meia ressurgia em suas criações, nos faz pensar no próprio movimento cíclico da vida: como tudo simplesmente volta ao seu ponto de partida após uma trajetória de aprendizagem e experiências, se recria; nas próprias voltas que a vida dá, segundo o ditado popular, ou segundo a artista cita (tendo como referência o quadro acima): Now that I am back. Através da simplicidade desses gestos circulares – dos que nos fazem exclamar “Mas isso, até eu posso fazer!”, mas que nunca ousamos haver feito anteriormente – Mira nos provoca: se seus círculos podem ser entendidos como símbolos dos movimentos circulares e cíclicos da vida, então, a vida e nós mesmas não podemos ser interpretadas de uma forma linear e determinista. Nós podemos sim determinar a extensão da circunferência de nossa própria existência e de tudo o que ela alcança. As formas circulares (uma vez representadas pelas rodas ou escudos de Aquiles, outras vezes por simples círculos desenhados nos mais diversos formatos) podem ser entendidas também como a retomada de uma questão fundamental e existencial no trabalho de Mira Schendel, que ciclicamente ressurge em diferentes tempos e através de pontos de vista ou leituras distintos da artista. A cada novo ciclo, a cada novo ressurgimento, essas formas circulares foram representadas sob novas dimensões e contextos. A busca constante por reinventar e experimentar novas técnicas foi outra inquietude marcante da artirta e isso nos permite, hoje, reconhecer em todo seu projeto uma coerência artística – ainda que não tenha seguido uma cronologia linear ordenada – como se pode observar nos trabalhos a seguir:

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                                                                                          Essa constância cíclica na retratação de certas figuras pode também ser encontrada na presença de traços-flechas, elementos com os quais Mira trabalhou em suas últimas produçõeInfluenciada pela poesia concreta brasileira e por discussões filosóficas sobre a linguagem, a transparência e o significado das palavras, Mira passou a utilizar signos gráficos, partes de poemas e canções populares brasileiras para compor seu trabalho Monotipias (1964-1966), que inicialmente contava com cerca de 2000 desenhos em folhas de papel de arroz. Aqui, ela explorou à exaustão a potencialidade visual da linguagem escrita, que trasladou das folhas dos livros originais às suas instalações sobre folhas quase transparentes e penduradas desde o teto em placas de acrílico transparentes, formando delicados jogos de linguagem. Partes de poemas de João Cabral de Melo Neto e do filósofo alemão Max Bense mesclam-se aos versos de canções de Chico Buarque e diversas palavras em outros idiomas (alemão, francês, inglês, italiano e português), compondo de uma forma fluida e harmônica trabalhos de caráter universal por combinar e interligar ludicamente distintos idiomas.

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A transparência das folhas de papel de arroz coloca também em evidência a fragilidade de nossa linguagem e racionalidade ocidental, já que o fundo leitoso cria a aparência de simultaneidade entre o lado direito e o avesso, podendo-se ler letras e frases em ambos os lados e sentidos. Com esse seu jogo enganosamente ingênuo, Mira procura nos levar ao limite de nossa própria linguagem, de nosso próprio entendimento de mundo e como o decodificamos através dela. O que para muitos filósofos significaria infindáveis discussões e folhas e mais folhas de pura teoria sobre a linguagem, Mira logrou sintetizar em simples folhas de papel arroz sua própria teoria.

 

Um dos principais signos gráficos apropriado e reproduzido à exaustão por Mira foi a letra “a”. Em uma espécie de automatismo de repetição, essa letra adquire diversas fontes, tamanhos e, devido a sua repetição quase ininterrupta, acaba perdendo seu atributo, sua propriedade, seu significado como letra “a”. A artista retira a letra “a” de seu espaço comum e procura moldá-la e transformá-la em um novo sinal gráfico, em um novo objeto de arte. É como se ela nos desafiasse a participar de um típico jogo infantil: o de repetir uma mesma palavra rapidamente e sem muito intervalo para respirar ou pausa. Após certos segundos nesse jogo mareante, aquele que está repetindo tal palavra perde a noção do que está dizendo e a palavra em si acaba perdendo também o valor de seu significado para essa pessoa. Com isso, Mira materializa para a gente a fragilidade da linguagem humana, especialmente representada pela letra “a” que tende a ser um dos primeiros sons que reproduzimos quando bebês, que posta em ação em um outro contexto recebe novas propriedades, novos significados e formas. Mais uma vez a simplicidade da artista em construir e desconstruir a realidade nos provoca e ousa nos tirar da zona de conforto de nossa própria linguagem:

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Sua última série de trabalho, intitulada Sarrafo (1987), Mira Schendel retoma ciclicamente a figura de traços-flechas em um conjunto de 12 chapas grandes de madeira pintadas de branco e cortadas aleatoriamente por traços. Aqui, gesto e desenho são explorados pela artista de forma abrupta e violenta. O gesto de cortar o espaço da chapa de madeira com um traço-flecha surgiu da reação da artista ao confuso contexto político brasileiro no ano de 1987: “Naquele momento, como todos, eu também sentia necessidade de ter uma direção, um rumo. E estas obras são uma reação ao marasmo daquele momento”, esclareceu em seu lançamento. Pode-se entender que essa foi sua resposta às críticas que recebia por não produzir uma arte considerada engajada, obras com temáticas explicitamente políticas e ideologicamente combativas à ditadura militar brasileira (1964-1985). Com essa série, a artista deixa clara sua consciência política, a força de suas opiniões e, principalmente, a força de sua decisão de entrar em ação obedecendo e sendo fiel aos seus próprios tempos.

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Quando observamos a trajetória de Mira Schendel, fica claro que estamos diante de uma mulher inspiradora que não temeu tomar as rédeas de sua vida e esteve consciente do momento exato em atirar suas lanças-flechas nas direções que bem lhe entendia e segundo os tempos que ela mesmo determinava. Faz pouco tempo que li um romance de uma escritora alemã contemporânea, Julie Zeh, de onde extraí uma citação que me marcou e bem poderia remeter à Mira Schendel: “Existem muitas pessoas que gostam de mim, mas apenas uma tem de viver comigo. E essa pessoa sou eu”. Mira soube desenvolver a arte de saber viver consigo mesma e sua arte ilustra a simpleza e a ousadia dessa decisão.

 

 

Observações:  

  • Todas as imagens reproduzidas neste texto foram retiradas do catálogo da exposição “Mira Schendel” organizada pela Pinacoteca do Estado de SãoPaulo entre julho e outubro de 2014. Tal catálogo foi gentilmente cedido em formato eletrônico pela Acessoria de Imprensa da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

  • Este texto foi originalmente publicado no site www.thinkolga.com no dia 28 de novembro de 2014.

  • Um artigo relacionado à mostra foi publicado em espanhol em Página 12 com o título Mira Schendel: los itininerarios más allá de los signos no dia 5 de agosto de 2014.

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